Mapeamento de conflitos fundiários urbanos na cidade do Rio de Janeiro

A remoção forçada de populações pobres moradoras de áreas valorizadas pelo mercado imobiliário urbano (ou suas frentes de expansão) é uma solução recorrente na produção do espaço urbano das grandes cidades brasileiras. Entende-se aqui como remoções os processos coletivos de expropriação em que pobres urbanos sofrem ações de deslocamento forçado de seus locais de moradia. Com o objetivo de traçar um panorama dos processos de remoção correntes na cidade do Rio de Janeiro, foi realizado um levantamento dos casos de (i) de ameaças de remoções, (ii) remoções efetivadas nas quais a posse sobre a moradia foi rompida, e (iii) remoções evitadas com a garantia da segurança da posse às famílias e/ou pessoas envolvidas nestes processos. Para tanto, foram consultados os processos judiciais acompanhados pelo Núcleo de Terra e Habitação (NUTH) da Defensoria do Estado do Rio de Janeiro, entidade que tem se inserido nos conflitos fundiários na defesa do direito à moradia, atuando em casos onde existe ameaça da posse. Em nossa pesquisa, foram analisados os processos de ameaça de posse da moradia acompanhados pelo NUTH, que chegaram à esfera judicial, e que tiveram andamento no ano de 2018. O levantamento foi realizado a partir de consulta aos documentos relativos aos processos judiciais. Para qualificar e complementar informações, houve ainda o diálogo com defensores, estagiários e servidores do Núcleo.

Destaca-se que levantamentos como este enfrentam, dentre suas diversas dificuldades metodológicas, a invisibilização das soluções de moradia informais e os conflitos fundiários que colocam sob ameaça de remoção parcela significativa das classes populares. Como colocado por Raquel Rolnik, a “geografia da invisibilidade” ao mesmo tempo que é motivadora de pesquisas neste campo, é também seu grande desafio, levando a dados e informações fragmentadas, subdimensionadas e incompletas. Neste sentido, a existência do NUTH enquanto núcleo consolidado de atuação específica neste campo, possibilitou o acesso a informações qualificadas e que registram memórias de processos longos.

Neste levantamento foram identificados 93 casos de conflitos fundiários urbanos (envolvendo 9.217 famílias), sendo a grande maioria caracterizados como ameaças de remoções (87 casos, envolvendo 8.540 famílias), 13 destes em situação de risco iminente. Neste conjunto de casos, nota-se o destaque dos agentes privados na promoção de ações que levam à insegurança da posse, aparecendo como responsáveis por 55 dos 87 casos de ameaça de remoção. Por sua vez, o poder público aparece como responsável por 32 casos, nos quais a média do número de famílias ameaças é significativamente superior aos protagonizados por agentes privados.

Fonte: Luciana Ximenes/Observatório das Metrópoles

Buscando analisar as informações de forma atenta às implicações do recente ciclo olímpico vivido pela cidade do Rio de Janeiro no agravamento da insegurança da posse, foi observada a data de início das ameaças de remoção e das remoções efetivadas em relação aos ciclos olímpicos locais. Tem-se que 45% das famílias ameaçadas de remoção em 2018 passaram a viver sob esta ameaça nas gestões municipais de Eduardo Paes. Este percentual é de 41% se consideradas as gestões estaduais de Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão.

Fonte: Luciana Ximenes/Observatório das Metrópoles

Na análise das informações levantadas, são feitas reflexões ainda sobre a inserção urbana dos casos. Os casos distribuem-se ao longo de todo o território da cidade, entretanto destaca-se uma significativa concentração na área central, que apresenta baixa taxa residencial, abriga o centro histórico da cidade, é local de moradia de apenas 7% da população municipal e tem pouco mais de um terço de sua população vivendo em favelas. Ali encontram-se 24 casos de ameaças de remoção em curso em 2018 e três casos de remoções efetivadas neste mesmo ano, levando ao deslocamento forçado de 395 famílias. Na última década, esta região passou por amplos processos de ajustes espaciais que provocaram modificações na sua ordem urbana e social, intensificando os conflitos em torno do acesso à terra, sendo exemplos disto as remoções forçadas e as ameaças ainda em curso.

A condição de insegurança da posse ganha relevo nas favelas cariocas, sendo este o espaço de moradia da maior parte das famílias do universo pesquisado. A consolidação das favelas como local de moradia das classes populares enfrentou períodos de violentas remoções forçadas e, a partir da década de 1980, tem sido marcada por políticas de urbanização. Os dados levantados juntos ao NUTH demonstram que tais políticas não garantiram a extinção da “cultura de remoção”. No universo pesquisado, 5.830 famílias têm sua moradia em favelas, representando 68% do total de famílias em ameaça de remoção em 2018. Observa-se ainda um significativo aumento do número de casos de ameaças de remoção em áreas de favela em 2010, ano que marca o período em que a realização de grandes projetos urbanos ganhou legitimidade pelo “ciclo olímpico”, reforçando o entendimento da prática da remoção forçada como uma ação historicamente permanente e que encontra sua legitimação nas mais diversas conjunturas.

A expressividade dos dados encontrados neste levantamento indica a gravidade dos casos de ameaça do direito à moradia e reforça a centralidade do debate em torno da função social da propriedade nos conflitos urbanos em curso na cidade do Rio de Janeiro. Na análise dos casos torna-se claro que, apesar dos reconhecidos avanços em nossos marcos normativos, existe ainda uma profunda insegurança da posse que coloca em situação de vulnerabilidade famílias excluídas do acesso à moradia pelo mercado imobiliário formal e que não são contempladas por políticas públicas, que historicamente se mostram ineficazes no atendimento à demanda popular.

Diante do contexto de crise econômica e política vivida pelo Brasil no período recente, no qual se insere de forma destacada a cidade do Rio de Janeiro, a retração dos investimentos públicos e a paralisação de diversos programas sociais fazem com que tais condições de moradia permaneçam como alternativa possível para grupos em extrema vulnerabilidade social. Neste cenário, ao ocuparem imóveis abandonados, esses grupos reivindicam o direito à moradia e à cidade, colocam-se em oposição às formas de apropriação do espaço movidas pelos interesses imobiliários e corporativos, e encontram como perspectiva o agravamento das ações violentas de expulsão.

Um dos produtos gerados por essa pesquisa foi o capítulo sobre a cidade do Rio de Janeiro, que compõe o relatório “Panorama dos Conflitos Urbanos Fundiários do Brasil”, organizado pelo Fórum Nacional da Reforma Urbana. O texto teve autoria de Bruna Ribeiro, Luciana Alencar Ximenes e Orlando Santos Junior.

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